Aneel deve repensar a intenção de inovar na gestão dos contratos de concessão ao incorporar reforços por meio de aditivo ao contrato, visando o bem da estabilidade e da segurança jurídica ao setor
Fonte.: CanalEnergia
MÁRIO MIRANDA, DA ABRATE
CARLOS ADOLFO PEREIRA, DA ABDIB
Presidente executivo e Coordenador do Comitê Transmissão de Energia
As substanciosas mudanças no marco legal estabelecidas nos anos 90, iniciada com a lei geral de concessão nº 8.987/1995, promoveram profunda alteração na concessão de serviços públicos de energia elétrica.
Destaca-se o segmento de transmissão que até então era considerado associado à geração. Assim, ao desverticalizar a concessão em geração, transmissão e distribuição, o novo modelo veio com os pontos fulcrais de assegurar o abastecimento de energia elétrica com modicidade tarifária. Nasceu a transmissão neste ambiente desafiante, sem subsídios, a valor de mercado. No início deste novo ambiente, as transmissoras existentes detinham cerca de 71 mil km de linhas de transmissão e, sob o cenário de licitação de concessão, neste ano será alcançado 165 mil km.
A mudança de ambiente foi transformacional: passou-se de concessionários tradicionais estatais, com financiamento e garantia governamental, para ambiente de competição com “project finance” em que a gestão e os riscos do negócio são realizados em ambiente compartimentado de cada concessão licitada, não raro sob responsabilidade de sociedades de propósito específico – SPE.
O segmento de transmissão brasileiro se apresenta com características inéditas no cenário mundial, na medida em que sua expansão é assegurada pelos certames de leilão de concessão de seu serviço público. Para que este modelo tivesse sucesso, tornou-se necessária no processo de atração do capital privado a segurança legal-regulatória dos contratos, a adoção de regulamentos justos para a adequada prestação do serviço, o que levou à sustentabilidade do negócio. E, assim, a transmissão tem sido caso exemplar de sucesso.
Não obstante o sucesso inicial, entre os anos de 2013 e 2017 a transmissão passou por severa crise, a partir da MP 579/2012, que antecipou o encerramento dos contratos de concessão, prorrogando-os em seguida, em busca de redução do preço da tarifa. A ausência de regras regulamentadoras consequentes, que somente foram estabelecidas 4,5 anos depois, deu causa à forte desconfiança por parte dos investidores. Os poucos que se dispuseram a participar dos leilões passaram a exigir maiores taxas de retorno diante do aumento real do risco legal-regulatório, que neste período alcançou o índice da relação Receita Anual Permitida (RAP) pelo Investimento (RAP/INV) da ordem de 19%, ou seja, maior rapidez na recuperação do capital investido.
Neste período, predominavam os lotes vazios, sem interesse de investidor, e chegou a ponto de serem arrematados somente 40% dos lotes ofertados, o que afetou, por exemplo, a integração de usinas eólicas, fonte de energia mais barata ao consumidor.
Somente com a edição da Portaria 120/2016, que regulamentou a Lei 12.783/2013 (conversão da MP 579/2012), deu-se início à normalidade setorial. À época, foi dado total apoio à ANEEL na condução dos debates sobre a busca de solução para os desafios da transmissão e seu financiamento. A partir de adequado diagnóstico a agência implementou ações que recuperaram o ambiente positivo de leilão. Também, em muito colaborou o TCU, em especial ao colocar o tema do licenciamento ambiental da transmissão em pauta de debates, logrando melhorias no processo. A transmissão foi reconstruída!
Novamente formou-se o ambiente propício aos investidores, os quais trouxeram aquela relação RAP/INV a valores próximos a 10%. Foi alcançada a missão inequívoca da transmissão de proporcionar a integração das geradoras às distribuidoras, com confiabilidade, sob forte disputa pelas concessões, cujos deságios verificados foram diretamente em benefício dos consumidores.
Entretanto, atualmente, depara-se com a intenção da ANEEL em inovar na gestão dos contratos de concessão, contrariamente à regulamentação existente, deixando de autorizar aquelas obras de reforços estabelecidas no programa de obras de transmissão de energia elétrica (POTEE), aprovadas pelo poder concedente, e pretendendo incorporá-las mediante aditivo ao contrato de concessão. Tal intenção é calcada na visão inicial equivocada de que deveria haver captura do deságio oferecido no leilão.
Na licitação de serviços de concessão o “objeto” deve ser firme.
Ora, no ambiente de licitação submetido ao mercado o “objeto” é firme, para determinar o valor da receita, o quanto o investidor está disposto a assumir o risco da concessão precedida de implantação de obra pública, vez que há ainda as variáveis da conjuntura social e econômica, e suas próprias estratégias. O investidor teria enorme dificuldade de participar de certame de leilão, com o objeto a ser futuramente alterado impositivamente em até 25% de seu valor global, o que afeta a equação original do negócio.
O contrato de concessão de serviços públicos estabelecido com a União é regido pela Lei Geral de Concessão (Lei 8.987/95), em obediência ao Artigo 175 da Constituição, onde estão definidos os deveres e direitos e neste instrumento se insere a obrigação de executar as obras de reforços aprovadas pelo MME.
Por óbvio que a aplicação da Lei Geral de Licitações deve ter caráter estritamente subsidiário, devendo seu regramento ser aplicado somente naquilo que couber quando o assunto é contrato de concessão. E isso porque os contratos de obras, fornecimento ou prestação de serviços regidos pela Lei 8.666/93 têm natureza jurídica e características muito distintas dos contratos de concessão. Destaca-se como uma das principais diferenças o período para amortização do investimento. Enquanto nos contratos de natureza geral, mesmo que de construção, o particular vê seu investimento totalmente remunerado tão logo tenha sido concluído o serviço, nos contratos de concessão essa remuneração se dilui ao longo do tempo. Há toda uma engenharia matemática na formação do preço a ser oferecido no leilão, que leva em consideração aquele objeto definido no edital. Não se pode ignorar que qualquer alteração posterior muda a estrutura dessa equação.
E não há, nos contratos de concessão do serviço público de transmissão de energia elétrica previsão sobre a possibilidade de alteração unilateral do objeto do contrato, durante a fase de implantação do empreendimento. A previsão existente diz respeito a obrigação e responsabilidade (risco) da transmissora, de realização dos reforços e melhorias, de acordo com a legislação e regulação existente.
À transmissão cumpre sua finalidade de ser a infraestrutura integradora da geração até as distribuidoras e consumidores, e que provê da necessária segurança energética e de confiabilidade ao sistema elétrico. A sua responsabilidade é evidenciada nestes tempos de escassez hídrica que afeta o país, em que o Operador Nacional do Sistema (ONS) gerencia o sistema elétrico em bases técnico-econômicas, ao poder decidir pela geração mais barata, independentemente da localização da usina, graças a esta exuberante malha de transmissão implantada com esforço, dedicação e profissionalismo.
As transmissoras participam ativamente como parceiros da ANEEL na construção de ambiente propício aos novos investimentos, e de apoio ao aprimoramento da regulação da adequada prestação do serviço concedido, como na contribuição à Consulta Pública 030/2020, que trata objetiva e justamente do aprimoramento do tema Autorização de Obras de Reforço e Melhorias.
Por isto, é importante que tal intenção seja repensada, a bem da estabilidade e da segurança, ambiente no qual os investidores têm atendido o chamado do governo e já investiram mais de R$ 250 bilhões na transmissão de energia, construindo uma infraestrutura robusta vital para o desenvolvimento do país e para o atendimento das necessidades da sociedade brasileira.
Mário Dias Miranda é presidente-executivo da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate)
Carlos Adolfo Pereira é coordenador do Comitê Transmissão de Energia da Abdib.