Fonte.: Canal Energia
Da mesma forma que ocorre com a geração e distribuição, as atividades de transmissão e comercialização também apresentam riscos próprios e consequentemente prêmios de riscos específicos para suas atividades, o que é absolutamente normal.
Por Cláudio Ferreira
Com a publicação do Decreto 10.350/2020 o Governo atuou de maneira correta no que tange à situação da deterioração do caixa das distribuidoras, à luz da queda da demanda e potencial aumento da inadimplência, resultado da crise sanitária conhecida como COVID-19.
As distribuidoras, concessões públicas, possuem um regime jurídico próprio e uma lógica de risco-retorno completamente diferente do resto da cadeia do setor elétrico. Por serem consideradas um monopólio natural, estas possuem sua remuneração pelo serviço de distribuição de energia definida por meio do estabelecimento de suas tarifas pela ANEEL. No que tange à tarifa das distribuidoras, existe a Parcela A – referente aos custos não gerenciáveis, como encargos setoriais, de transmissão e custos de compra de energia – e existe a Parcela B, referente aos custos gerenciáveis, como os custos de operação e remuneração dos ativos e investimentos. Em razão desta natureza, o mercado estabelece um prêmio de risco para o setor, o qual costuma ser mais baixo que as demais atividades da cadeia por se tratar de um investimento de baixíssimo risco.
Já para o mercado de geração, os riscos inerentes às atividades têm início ainda na fase de estruturação e construção de um projeto. Cabe ao empreendedor, por exemplo, assumir os riscos da realização do licenciamento ambiental, regularização fundiária, obtenção de todas as aprovações regulatórias, gerenciamento da obra para se evitar atrasos e/ou sobrecustos, viabilização de contrato de compra e venda de energia (seja no mercado livre, mercado regulado ou um mix de ambos), além de estruturar o financiamento do projeto. Uma vez iniciada a operação comercial do empreendimento, o gerador deve se responsabilizar pela sua operação e manutenção e arcar com todos os custos e riscos inerentes à atividade por, ao menos, 20-30 anos. Acrescente-se, ainda, o risco de variação do PLD ao qual os geradores estão expostos, uma vez que normalmente os geradores não vendem 100% de sua garantia física ou o prazo do PPA costuma ser menor do que prazo da respectiva outorga/concessão, fazendo com que seja comum a venda de energia excedente no mercado de curto prazo – que é extremamente volátil. Por todos estes riscos que os geradores correm, o mercado estabelece um prêmio de risco da geração, muitas vezes, mais alto que o de atividades como a de distribuição de energia.
Da mesma forma que ocorre com a geração e distribuição, as atividades de transmissão e comercialização também apresentam riscos próprios e consequentemente prêmios de riscos específicos para suas atividades, o que é absolutamente normal. Porém, quando há situações em que começam a aventar uma alteração neste equilíbrio existente nas cadeias do setor elétrico, por meio da alocação de riscos diferentes daqueles que os investidores consideraram originalmente quando da tomada de decisão de investimento, esta lógica de prêmio de risco tende a ficar desbalanceada e, por conseguinte, a atratividade do setor é afetada, fruto do resultado da criação da insegurança jurídica. Esta mudança na alocação de risco entre os agentes, além de reduzir a atratividade do setor para investidores locais e estrangeiros, também leva a um risco grande de aumento de judicialização, como ocorreu no caso do GSF (Generation Scaling Factor), o qual agregou um risco adicional à atividade de compra e venda de energia por parte de geradores e comercializadores, que é a redução no recebimento da liquidação pela CCEE. Ou seja, diversos agentes faturam, mas não recebem, o que gera a necessidade de maior atenção e sofisticação na gestão do caixa de suas operações.
De maneira acertada, o governo atuou no sentido de não expor o resto da cadeia ao problema de caixa das distribuidoras, por meio da estruturação em andamento de empréstimos semelhantes àqueles que foram estruturados em 2014-2015, quando as distribuidoras, então subcontratadas, ficaram expostas a PLD em patamares superiores a R$ 800,00 por MWh. Naquele momento, o governo estruturou empréstimos em montante superior a R$ 20 bilhões por meio de bancos públicos e privados. Na presente situação, além da estruturação destes empréstimos, o governo vem buscando adotar alternativas por meio de contas setoriais superavitárias, como por exemplo a conta ACR, P&D, Encargo de Transmissão, entre outras, como forma de reduzir o montante do empréstimo e impacto na conta de luz do consumidor, além de criar mecanismos para postergar eventuais aumentos nas tarifas que aconteceriam no curto prazo.
Embora estejamos caminhando na direção correta, que é a manutenção da segurança jurídica e respeito aos contratos, alguns agentes do setor, de tempos em tempos, vinham expondo na mídia a ideia de que não seria correto os distribuidores e consumidores arcarem com os custos deste empréstimo sozinhos. Ora, partindo da lógica de que distribuição é uma atividade regulada com regime jurídico próprio, o que não é adequado é um discurso que compromete a segurança jurídica de um dos poucos setores de nossa economia em que o Brasil é referência mundial e possui um histórico de poucas mudanças impactantes, além de ser um dos setores da economia que mais cresce, com investimentos constantes e relevantes ano após ano. Alterar esta lógica de alocação de risco pode colocar em dúvida a atratividade do setor elétrico e comprometer o seu funcionamento, uma vez que medidas em desrespeito à segurança jurídica acarretariam possivelmente uma grande judicialização do setor. A consequência lógica é o impacto direto em toda a cadeia incluindo os agentes financeiros envolvidos nos projetos, os fornecedores – que seriam afetados pela provável paralisação do setor – e todos os milhares de empregos direta e indiretamente envolvidos nas atividades do setor elétrico.
Não faz qualquer sentido que os riscos de um determinado agente sejam repassados aos demais. Os geradores, cujos projetos estão em construção, já estão sendo fortemente afetados com atraso nas suas obras, fruto de restrições de circulação impostas pelas autoridades, aumento de CAPEX devido à variação cambial e aumento do custo de capital. Da mesma maneira que estes geradores não estão pleiteando repassar estes prejuízos aos distribuidores, requerendo um aumento na tarifa dos contratos, o oposto também não deveria se aplicar. Além disso, para os geradores com projetos em operação, uma redução na receita ou um aumento de custo traria consequências severas como, por exemplo, a eventual dificuldade no cumprimento dos pagamentos das dívidas contraídas para as construções dos projetos, o que poderia gerar um vencimento antecipado dos contratos de financiamento de todas as usinas de um empreendedor, resultando em quebras de contratos em cadeia, desempregos e outros impactos ao setor, gerando uma bola de neve cada vez maior. Porém, neste momento é importante parabenizar o governo pelo Decreto, o qual possibilitará, uma vez realizadas suas determinações, equacionar a situação de caixa das distribuidoras sem onerar o consumidor no curto prazo e também sem transferir o problema para o resto da cadeia.