Fonte: Camila Maia / MegaWhat
O problema do projeto de lei (PL) 5.829/2019, que trata da criação de um marco legal para micro e minigeração distribuída (MMGD) no Brasil, não está no tratamento dado à fonte solar fotovoltaica, mas sim no sistema de compensação de energia elétrica, o chamado “net-metering”, afirmou Luiz Barroso, presidente da PSR. A MegaWhat conversou com o especialista, que foi um dos responsáveis por um estudo polêmico apresentado no início de abril sobre os impactos da GD, para entender o que está em debate e quais as potenciais saídas.
Na entrevista, Barroso admitiu que o estudo, que prevê um impacto de R$ 134 bilhões na tarifa de energia em subsídios para projetos de geração distribuída nos próximos 30 anos, não considerou os benefícios trazidos ao sistema. Ele lembrou, contudo, das dificuldades no cálculo desses benefícios, uma vez que dependem da localização da usina e do perfil da rede, entre outros, para serem materializados.
A solução, para o especialista, está em um “meio termo”, que mantenha as condições atuais para os sistemas de geração distribuída existente, com uma janela de transição mais curta que a defendida pelo PL. Depois desse período, “a compensação ocorreria apenas no custo da energia, e no máximo nas perdas técnicas para o caso da geração distribuída local”, afirmou Barroso.
Mesmo com as mudanças, Barroso aposta na continuação do crescimento da geração solar fotovoltaica no país. “A PSR atua em 70 países e a geração solar é a rainha dos sistemas elétricos pelo mundo. Seu crescimento no Brasil é inexorável, independente do que ocorra com o PL 5.829.”
Confira a entrevista na íntegra:
MegaWhat: Qual o problema com a geração solar hoje?
Luiz Barroso: O problema não é a solar e sim o ‘net-metering’, chamado no brasil de sistema de compensação de energia elétrica. No caso da micro e mini geração distribuída (MMGD), ele introduz uma conhecida ineficiência com sua estrutura de compensação de muitos itens além da energia na conta de luz. Como já amplamente discutido, isso cria subsídios cruzados, fazendo consumidores que não instalaram painéis solares pagarem a conta.
MW: Como funciona o net-metering?
LB: O net-metering permite que a energia gerada um consumidor com MMGD seja utilizada para reduzir o seu consumo de energia, e possíveis excedentes gerados sejam injetados na rede da distribuidora para compensação em meses subsequentes. O excesso de geração em um determinado mês torna-se um crédito de energia a ser utilizado para compensação local ou remota na fatura de energia, podendo ser usado em até 60 meses. Esses créditos podem ser utilizados também de forma remota, sob o mesmo CNPJ e área de concessão. A grande atratividade para o consumidor é que, das componentes da tarifa final que são cobradas em função do volume consumido, o pagamento líquido à distribuidora é apenas a diferença entre o consumo importado da rede e a geração exportada. A soma dos MWh produzidos pelos consumidores são usados para “compensar” custos totais do serviço: energia, rede e encargos.
Isso torna esse sistema muito atrativo para consumidores cativos de pequeno porte conectados à baixa tensão da distribuidora, cuja tarifa de fornecimento é integralmente em função do consumo. Para consumidores cativos que possuem parte da tarifa dependente de outras grandezas, como aqueles que pagam uma tarifa em R$/kW de demanda contratada, essa solução é menos atrativa. O que não quer dizer que seja inviável.
Já para os consumidores livres praticamente não há incentivo, já que apenas uma parte da TUSD seria compensada, uma vez que eles não pagam a tarifa de energia. Nesse sentido, torna-se mais interessante adquirir energia do ACL Convencional ou do ACL Incentivado, do que desembolsar o investimento necessário para instalar um sistema de MMGD.
MW: E qual seria o funcionamento ideal?
LB: O melhor modelo é o pagamento dos custos da rede. O sol é de graça, mas a rede não. Em seguida deve ser permitido ao gerador vender seu excedente de produção, remunerado idealmente por um sinal econômico tanto na parcela de energia quanto da Tusd [Tarifa de Uso de Sistemas de Distribuição]. Isso significaria vender os excedentes de produção por uma tarifa horária, que reflita o valor desta energia para o sistema e para o carregamento das redes. O sinal da TUSD poderia ainda ter um componente locacional. Na impossibilidade de definir tudo isso, há metodologias intermediárias disponíveis como o cálculo de um “hosting capacity” nas redes das distribuidoras que permitiriam definir áreas quentes para instalação de MMGD, e que até poderiam ter algum incentivo locacional definido anualmente, por exemplo, associado aos benefícios de instalação nestas áreas quentes.
MW: Muito se fala sobre os retornos exacerbados com a GD. Este tema deve ser ponto de preocupação no net-metering?
LB: Acho que nenhuma política pública deve ser orientada a controlar retornos e paybacks. O retorno será o que tiver que ser. O investidor se otimiza frente às políticas públicas existentes aos custos de implantação, que só vêm caindo com o avanço tecnológico. Há riscos neste investimento também, como o câmbio e a performance. Mas não temos que revisar o net-metering porque o investidor ganha muito. O cerne da discussão é sua ineficiência, que transfere renda via cria subsídios e a MMGD não precisa mais. Temos muitos clientes que mostram ótimos retornos com MMGD mesmo sem o subsídio atual, com fortes planos de expansão nesta área.
MW: No início de abril, a PSR e a Siglasul apresentaram um estudo, contratado pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), prevendo que a versão atual do PL 5.829/2019 pode gerar um impacto de R$ 134 bilhões na tarifa de energia em subsídios para projetos de geração distribuída nos próximos 30 anos. Como foi feito o estudo?
LB: Em primeiro lugar, este é um dos elementos de um estudo maior em andamento. Tecnicamente, calculamos o valor presente líquido da transferência de custos calculados pela diferença entre a proposta de tarifação contida no PL 5.829 e a tarifação que consideramos a adequada, condizente com a Alternativa 5 proposta pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), onde apenas o custo de energia é compensado.
MW: Ou seja, vocês consideraram o cenário previsto pelo PL e compararam com uma mudança imediata mais radical no net-metering?
LB: Consideramos o cenário do PL em discussão naquele momento e comparamos com uma mudança do incentivo para a Alternativa 5 da ANEEL, aquela que compensa somente a energia para os novos entrantes, mantendo o esquema atual para os existentes.
MW: A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) contestou os resultados do estudo da PSR e pediu a metodologia e a memória de cálculo utilizadas. Vocês apresentaram essas informações?
LB: Houve uma solicitação para o recebimento das memórias de cálculo. De nossa parte, não há problema entrar em qualquer discussão técnica, essa é a nossa praia. Mas a PSR está realizando um estudo para a Abradee no qual este item é um primeiro entregável de um trabalho maior. Então, a divulgação destes detalhes deve ser discutida com a associação, para evitar tirar o foco da discussão principal.
MW: A Absolar também criticou o estudo por não considerar os benefícios da fonte solar fotovoltaica ao sistema, como os investimentos evitados em novos projetos de geração e transmissão de grande porte…
LB: Houve muitas críticas por parte dos investidores em MMGD, alegando haver benefícios da geração distribuída que não foram apresentados no estudo. Esta é uma crítica correta e, por isso, entendemos que tais benefícios precisam, de fato, ser calculados. E bem calculados, pois original de iterações complexas do sistema elétrico e são complexos. Este tema foi também bastante mencionado na mesma ocasião da comunicação dos R$ 134 bilhões de impacto, mas infelizmente não foi comunicado nas notícias.
MW: Quais são os benefícios da MMGD? É possível calculá-los de antemão?
LB: Em primeiro lugar, é importante analisar tais benefícios às redes elétricas das distribuidoras. Sob essa perspectiva, sempre surgem questões associadas à redução de perdas. Este benefício, em particular, é bastante incerto, depende muito da localização da usina, do perfil de carregamento das redes nos períodos de maior insolação, além da própria rede, para a sua materialização. Além disso, no Brasil houve a massificação da MMGD remota, que não está instalada junto ao consumidor e que, por definição, depende integralmente do uso da rede para transportar energia. Essa é uma razão pela qual o seu custo deve ser pago pelo beneficiário da MMGD. Em muitos locais, esta geração está distante da demanda, podendo aumentar as perdas do sistema, ao invés de diminuir.
Em segundo lugar, é importante avaliar os benefícios da MMGD sob a ótica da matriz de geração de energia elétrica. É óbvio que a geração distribuída possui benefícios, como por exemplo a redução dos custos de geração térmica, adiamento de investimento em geração, transmissão e redução de emissões. Mas estes benefícios são também propiciados por outras fontes de geração renovável.
Portanto, a avaliação mais importante é a comparação entre o custo versus o benefício das fontes. Se distintas fontes fornecem estes benefícios, é esta relação entre custos e benefícios que deve guiar a análise. E neste ponto, entra a importante discussão entre renováveis centralizadas x distribuídas: a renovável centralizada, com mais escala, é bem mais barata em R$/MWh, e pode atingir os mesmos benefícios, incluindo os investimentos evitados em novos projetos de geração e transmissão de grande porte, sem subsídios e com mais eficiência. Esta conta é necessária e estamos fazendo.
MW: Você pode explicar essa conta?
LB: Suponha que a solar centralizada custe 150 R$/MWh e que a distribuída custe 450 R$/MWh. A diferença entre ambas é 300 R$/MWh. Se os benefícios aportados ao sistema pela MMGD solar forem superiores a esta diferença, não há o que discutir.
MW: Mas nem todo o consumidor hoje pode escolher comprar de uma renovável centralizada.
LB: Perfeito. É por esta razão, sob a ótica de eficiência global, que a abertura do mercado livre de energia para todas as empresas do Brasil, prevista no PL 414/2021, é o caminho correto para deixar o consumidor escolher de quem ele quer comprar. E tal como mostrado em muitos países, a abertura de mercado não mata a MMGD.
MW: E o consumidor com GD hoje paga encargos setoriais?
LB: No Brasil, os encargos setoriais tomam proporções relevantes e a tarifação por net-metering acaba isentando os ‘prossumidores’ de tais custos. A pergunta é: isso é o mais adequado? Esta é uma reflexão também relevante, pois se o consumidor de maior renda que instala um painel solar em sua cobertura não deve pagar a CDE, porque um consumidor de menor renda, sem acesso à Tarifa Social, deveria?
MW: Qual deve ser o caminho sobre o PL 5.829/2019? Não precisamos de um marco legal para a geração distribuída?
LB: É fundamental chegar a um meio termo. Eu não gosto da ideia de mexer no existente, acho que quem tem o direito deve mantê-lo. Por sua vez, para os novos, o benefício deveria ter uma duração bem menor, de por exemplo cinco anos aplicados apenas àqueles que acessarem o sistema de distribuição dentro de uma janela de
tempo específica e não muito longa após a publicação da Lei. A partir daí, a compensação ocorreria apenas no custo da energia, e no máximo perdas técnicas para o caso da MMGD local. E acho que o limite para de capacidade para a MMGD deve ser menor, como 3 MW no máximo.
MW: Revisar o PL 5.829/2019 vai parar o crescimento da fonte solar no Brasil?
LB: A PSR atua em 70 países e a geração solar é a rainha dos sistemas elétricos pelo mundo. Seu crescimento no Brasil é inexorável, independente do que ocorra com o PL 5829.
MW: O PL deveria definir diretrizes para o cálculo dos benefícios da GD solar fotovoltaica?
LB: Acho correto haver um comando para fatorar o benefício da GD, mas é muito importante ter cuidado para não deixar aberta a porta para definir arbitrariamente, de forma exógena, um fator de benefício para a geração distribuída que não guarde coerência com a realidade. Como falei antes, este benefício deve ser fornecido idealmente por um sinal econômico tanto na parcela de energia quanto da Tusd [Tarifa de Uso de Sistemas de Distribuição]. Isso significaria vender os excedentes de produção por uma tarifa horária, que reflita o valor desta energia para o sistema e para o carregamento das redes. O sinal da Tusd poderia ainda ter um componente locacional. Essa tem sido a batalha de outros países.
Em resumo, é sinalizar adequadamente os pontos e horários em que a GD traria maior benefícios às redes de distribuição. E esta é a proposta do PL 414/2021, em discussão no Congresso, que veio da Consulta Pública 33, conduzida pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em 2017. Além disso o consumidor que migra para a MMGD deve estar obrigatoriamente exposto a esta modalidade tarifária. Na impossibilidade de calcular tudo isso, há metodologias intermediárias disponíveis como o cálculo de um “hosting capacity” nas redes das distribuidoras que permitiriam definir áreas quentes para instalação de MMGD, e que até poderiam ter algum incentivo locacional definido anualmente, por exemplo, associado aos benefícios de instalação nestas áreas quentes.
MW: Você mencionou que a PSR atua em 70 países. Como é essa discussão no exterior?
LB: Esta discussão é também superquente em outros países, mas estes já efetuam a cobrança pelo uso da rede, como os estados americanos de Nova York, Califórnia e a Espanha e Austrália. Isso não se discute mais. Estes locais têm focado suas ações no desenvolvimento de uma estrutura tarifária que remunere o valor da
produção que ocorre além do consumo, fornecendo o sinal econômico e locacional necessário para reconhecer o seu valor para o sistema e permitindo assim sua inserção sustentável e racional. A Australia tem uma consulta pública em andamento sobre isso. Ou seja, a discussão nesses países é principalmente sobre como valorar corretamente a energia em diferentes horas do dia e diferentes localidades. E isso tem sido a chave para permitir a entrada das baterias. E solar com baterias locais é uma combinação fantástica.
MW: Há uma grande crítica sobre os subsídios da GD, mas sabemos que há inúmeros outros subsídios no setor elétrico. Como tratar o marco legal da GD considerando esse cenário?
LB: Esta questão da MMGD se soma à necessária revisão que o Brasil precisa nos subsídios de uma forma geral. A CDE [Conta de Desenvolvimento Energético] está estratosférica, impulsionada por subsídios e infelizmente ainda temos outras distorções. Mas não é correto o argumento que temos um erro para justificar outro. Precisamos acertar o fim destes mercados de nicho e deixar a competição ocorrer em cima da energia, que é o que interessa.