20 out 2020

MP 998/2020 e o desmonte da pesquisa e da eficiência energética no setor elétrico

Os Projetos de P&D resultaram em melhorias de processos internos de Concessionárias, maior eficiência operacional de todo o setor, trazendo melhoria de qualidade e continuidade da energia e redução de tarifas

Fonte.: CanalEnergia / Paula Gama

A obrigação de investir em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nasceu com a criação da própria Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, no ano de 1997, com a inserção de cláusulas específicas ao tema nos contratos de concessão das empresas de energia que, à época, foram privatizadas. Pouco tempo depois, promulgada a Lei 9.991/2000, regulamentou-se o que já vinha sendo praticado, há pelo menos quatro anos, pela maioria das empresas do setor quanto aos procedimentos e obrigações relacionados ao P&D e à Eficiência Energética (EE).

Em seus 20 anos de existência, o Programa P&D do Setor Elétrico trouxe enormes avanços para o setor, permitindo a formação de equipes qualificadas de pesquisadores, constituídas por profissionais de diversas áreas de engenharia com experiência do setor, professores universitários, doutorandos, mestrandos e estagiários. Resultados que permitiram aumentar a competitividade e reduzir o distanciamento do Brasil em relação aos pais mais desenvolvidos.

Os Projetos de P&D resultaram em melhorias de processos internos de Concessionárias, maior eficiência operacional de todo o setor, trazendo melhoria de qualidade e continuidade da energia e redução de tarifas. Permitiram o desenvolvimento de tecnologias disruptivas a seu tempo, como a geração eólica e a geração solar fotovoltaica. E foram também expressivos os investimentos na área ambiental, favorecendo uma maior integração dos sistemas elétricos com menor impacto ambiental, com a preservação de espécies nativas (de peixes e aves), redução do impacto socioambiental de reservatórios, redução de emissões de gases de efeito estufa, entre outros benefícios.

Duas décadas depois, sob o pretexto de reduzir a tarifa de energia elétrica, o governo tenta, novamente, desviar o objetivo dos recursos de pesquisa no País para outras finalidades. Isso porque ainda em 2004, com a aprovação da Lei 10.848/2004, parte dos recursos de P&D foi destinada ao Ministério de Minas e Energia – MME, sob a alegação de financiar a Empresa de Pesquisa Energética – EPE.

O interesse na destinação do recurso, conforme exposto nas justificativas do PL 943/2020, de autoria do Senador Marcos Rogério da Silva Brito, DEM – RO, foi o de pagar dívidas do Governo Federal, desvirtuando os princípios nobres da aplicação original criada pela Lei 9.991, de investimento em P&D no setor elétrico.

A nova investida contra o financiamento da pesquisa, pela MP 998/2020, tem economia estimada pelo órgão regulador de 0,8% na tarifa ou, em média, R$ 0,50 (cinquenta centavos) na conta mensal de energia com consumo de 100 KWh e tarifa social. Por outro lado, despreza toda a cadeia de profissionais, empresas, fornecedores e desenvolvedores que se criou e é mantida com os recursos do P&D e do PEE no País, e que movimenta o pagamento de impostos, como ISS, ICMS, CSLL, INSS, PIS e Cofins. Na prática, significa dizer que, para que a conta de energia diminua em R$0,50, pelo menos R$ 4,6 bi deixarão de ser colocados em circulação para girar empresas, manter empregos e gerar impostos para estados, municípios e Distrito Federal.

Ao comprometimento das receitas advindas do pagamento de tributos pelas atividades desenvolvidas por mais de 748 empresas executoras de projetos e mais de 13 mil profissionais, acrescenta-se ainda o prejuízo à capacitação profissional e ao desenvolvimento tecnológico: de 2001 a 2019, foram 1.217 os títulos alcançados em vários níveis de especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado pelos profissionais envolvidos em pesquisa no setor e mais de 250 os registros de patentes de inovações tecnológicas.

O objetivo de usar o recurso de P&D para reduzir a tarifa, apesar de nobre, chama a atenção também por ir na contramão de várias ações do próprio governo no que diz respeito:

  1. a) à busca de alternativas para que as universidades públicas se financiem – muitos são os institutos de pesquisa, associados às universidades, fornecedores de recursos humanos para o desenvolvimento dos projetos;
    b) à promoção de parcerias entre países emergentes, mantendo estruturas e recursos humanos envolvidos em pesquisa, conforme objeto da lei 9.991;
    c) à preservação e à criação de novos empregos qualificados para geração de valor para os produtos nacionais; e
    d) à manutenção da arrecadação de encargos e impostos, pagos por empresas e pessoas vinculadas às instituições de pesquisa, muitas delas criadas devido ao P&D Aneel.

Transferir indistintamente os recursos provisionados do P&D para uso diverso de seu objetivo primeiro não significa apenas pôr fim à inovação no setor de energia no País, mas matar a “galinha dos ovos de ouro” ao aniquilar empresas de base tecnológica e instituições de pesquisa, dentre outras atividades correlatas e empregos diretos e indiretos que, de súbito, serão extintos em razão da falta de recursos para investimento. O resultado previsível será o desmonte da cadeia de inovação com a falência de empresas do setor de pesquisa e a demissão em massa dos mais de 13 mil profissionais que hoje atuam no P&D ANEEL em todo o Brasil.

Não basta que os recursos sejam mantidos para os projetos que se encontram em processo de estruturação, respeitando esforços relacionados a editais, chamadas públicas e outras prospecções. É preciso cumprir a letra da lei sem artimanhas e sem deturpar sua aplicação – a Lei 10.848/2004, assim como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), promoveram desvio de recursos em prol do pagamento de dívidas do governo, pois tanto a EPE como o FNDCT não utilizaram integralmente os recursos arrecadados. Manobras como essas não deveriam ser admitidas em um País que muito tem a crescer e contribuir na esfera tecnológica.

A PD&I não acontece e não se dá em compartimentos estanques do conhecimento. Não raro, conhecimentos desenvolvidos com um objetivo específico têm seu uso e resultados ampliados para outras disciplinas que, originalmente, sequer eram imaginadas pela equipe de pesquisadores. Como exemplo: o processamento digital de imagens, com aplicações que vão desde diagnósticos avançados em medicina, passando pelo tratamento de imagens georreferenciadas obtidas com drones para monitoramento de vegetação e invasões de faixa em linhas de transmissão e reservatórios, até seu uso pelo setor aeroespacial, no monitoramento de fronteiras ou acompanhamento e previsão de safras agrícolas.

Soluções advindas do P&D Aneel foram amplamente disseminadas, a exemplo da pele de Tilápia usada para auxiliar no tratamento de pessoas queimadas; o uso do Biogel como solução ecológica e biodegradável para limpar animais e praias afetadas pelo derramamento de petróleo no litoral Nordestino em 2019 – o Biogel foi criado a partir de uma base de conhecimento formada por pesquisadores desenvolviam soluções de limpeza para usinas termelétricas; a primeira usina solar flutuante do País, orgulho da Chesf/Eletrobrás e do Governo Federal, gerando energia, estudos e benefícios à população adjacente.

Por tudo isso, vale a pena desestruturar um setor, por completo, para subsidiar a tarifa de energia elétrica?

Ainda que a intenção seja a de buscar recursos para não aumentar a tarifa nesse momento fortuito de pandemia, é preciso ter em mente que não é apenas a conta de luz que está em jogo, mas sim a independência tecnológica do País, a capacitação profissional, a renda de milhares de pessoas, seus empregos, a arrecadação de impostos pelas empresas de pesquisa e pessoas vinculadas ao setor elétrico, dentre outras áreas afetadas direta ou indiretamente com a descontinuidade dos recursos advindos do P&D Aneel.

O que se espera, como sugestão, é que o governo busque recursos – junto ao FNDCT ou ao MME – que não foram destinados corretamente para manter a atividade de pesquisa no País. A sociedade já pagou por tais recursos e eles não foram usados para beneficiá-la, como expressamente previsto em lei.

Paulo Gama é doutor em engenharia elétrica pela USP e CEO da Versattus Pesquisa e Consultoria em Energia