14 mar 2022

Os eventos de caso fortuito e/ou força maior no Setor de Transmissão e a alteração da matriz de risco assumida

A ANEEL passou a ser mais restritiva quanto ao reconhecimento de excludente de responsabilidade e com o decorrer do tempo e passou a negar todos os pedidos

Fonte.: CanalEnergia

Muito se propaga sobre a necessidade de estabelecimento de um ambiente de negócios seguro e previsível no país, baseado na segurança jurídica e regulatória. Em projetos de infraestrutura (de capital intensivo e longo tempo de maturação) essa máxima é ainda mais importante, já que o investidor necessita ter a garantia de que o contrato firmado com o Poder Público será respeitado, sendo a confiança nas instituições e na inalterabilidade das “regras do jogo” fundamental, pois um país com instituições voláteis perde credibilidade e afasta investimentos.

A forma [e a mudança] de tratamento da Agência Nacional de Energia Elétrica –ANEEL sobre o reconhecimento de eventos de caso fortuito e força maior no setor de transmissão de energia elétrica tem gerado um cenário de redução de receitas das concessionárias, causando insegurança jurídica e risco de judicialização.

Como se sabe, a remuneração pelo serviço prestado pelas concessionárias de transmissão se dá mediante recebimento da Receita Anual Permitida – RAP, cujo pagamento tem início a partir da entrada em operação comercial das instalações. A qualidade do serviço, por sua vez, é aferida por meio de indicadores associados à disponibilidade do sistema de transmissão, a chamada Parcela Variável – PV, que pode ser a Parcela Variável por Atraso – PVA ou por Indisponibilidade – PVI. Para o presente artigo importa o entendimento na aplicação da PVI.

A PVI é uma dedução na receita da concessionária que ocorre quando há indisponibilidade nas instalações de transmissão. Em termos gerais: havendo indisponibilidade da rede, a concessionária é sancionada pela aplicação dessa parcela variável, que reduz a sua remuneração.

Mas nem toda indisponibilidade ocasiona aplicação da PVI, já que as normas legais, regulatórias e contratuais vigentes excetuam algumas hipóteses de indisponibilidade, consideradas como não imputáveis às concessionárias, como é o caso dos eventos de caso fortuito e força maior.

É o caso dos eventos de sabotagem, vandalismo, queda de balões e pipa, e tiros de arma de fogo em linhas de transmissão, os quais historicamente foram reconhecidos pela ANEEL como eventos de caso fortuito ou de força maior, excluindo a responsabilidade das Transmissoras e logo, afastando a aplicação de PVI.
A desconsideração de PVI nesses casos ocorria porque foi essa a alocação de riscos previstas nos Contratos de Concessão. Ocorre que, como que para acomodar uma paulatina mudança de entendimento, a regulação sobre o tema foi sendo alterada ao longo dos anos. Vejamos:

A Resolução Normativa nº 270/2007 dispunha que “

quando o desligamento de uma FT for qualificado pela concessionária de transmissão como decorrente de caso fortuito ou força maior ou de situações de sabotagem, terrorismo, calamidade pública, de emergência e por motivo de segurança de terceiros, que interfiram na prestação do serviço, ela poderá requerer ao ONS a desconsideração do período correspondente”.

Por essa redação, o entendimento externado pelo ONS – e, quando necessário, pela ANEEL – com relação aos casos de sabotagem eram corretamente apurados como caso fortuito ou força maior e isentavam a Concessionária da aplicação da PVI. Com relação aos casos de queda de balão e pipa, a despeito de a regulação não ser expressa quanto à excludente para esses casos (como na sabotagem), o entendimento externado pelo ONS e ANEEL se baseava na discricionariedade e também havia o reconhecimento de excludente de responsabilidade.

Ocorre que, após a instauração da Audiência Pública nº 027/2014, foi publicada a Resolução Normativa nº 729/2016, que retirou a menção expressa aos eventos ,embora continuasse prevendo a possibilidade de afastamento da PVI por caso fortuito e força maior.

Importante observar que, no âmbito da referida audiência, o entendimento da Procuradoria-Geral da ANEEL foi favorável ao reconhecimento desses eventos como excludentes de responsabilidade, conforme Parecer Jurídico nº 125/2010-PGE/ANEEL:

(…)
Sem perder de vista o que foi dito no parágrafo anterior,
penso que o desligamento da FT pela queda de um balão ou pipa pode, sim, ser qualificado como caso fortuito ou força maior, uma vez que tal evento, teoricamente, deriva da ação de um terceiro, estranho à organização da atividade da concessionária, não lhe podendo ser imputável. Para que o juízo conclusivo nesse sentido se forme no caso concreto, no entanto, é preciso que se verifiquem os requisitos elencados na legislação.

A despeito da alteração para uma redação mais aberta, ainda sob a égide de REN729/2016 e mais precisamente até março/2018, os eventos de sabotagem – e, na maioria das vezes, quedas de balão – eram apurados como caso fortuito e força maior pelo ONS.

Ocorre que, a partir de então Agência mudou abruptamente seu entendimento, passando a não mais reconhecer tais eventos como excludentes de responsabilidade e aplicando a PVI às transmissoras.
De acordo com informações já externadas pelo ONS em processos administrativos, em 14.03.2018, foi realizada reunião com a ANEEL

na qual ficou determinado que os eventos de sabotagem deveriam deixar de ser apurados pelo ONS como caso fortuito e força maior e os pedidos apresentados pelas Concessionárias deveriam ser encaminhadas diretamente à ANEEL
.
A ANEEL passou a ser mais restritiva quanto ao reconhecimento de excludente de responsabilidade e com o decorrer do tempo e passou a negar todos os pedidos. Apenas eventos que apresentem características inequívocas de atos de sabotagem podem, em tese, ser apurados como caso fortuito ou força maior. Furto, roubo e vandalismo são classificados como “fortuito interno”, enquanto os casos de queda de balão são analisados pela Agência como “risco do negócio” de transmissão e, portanto, sem reconhecimento de excludente de responsabilidade.

Atualmente vige a Resolução Normativa nº 906/2020 que revogou a REN 729/2016e continua prevendo que o desligamento de uma FT decorrente de caso fortuito ou força maior pode ser desconsiderado pelo ONS, isentando o agente da PVI, embora não seja essa a prática.

Segundo a doutrina jurídica caso fortuito ou de força maior é um fato extraordinário, externo à conduta do devedor, previsível ou não, cujas consequências sobre o adimplemento de determinada obrigação são inevitáveis. A definição legal consta no art. 393 do Código Civil, que define o caso fortuito ou de força maior como o “ fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir ”. O caso fortuito exonera o devedor de cumprir a obrigação.

Ora, quem arriscaria dizer que eventos como sabotagem, vandalismo, queda de balões e pipa, e tiros de arma de fogo em linhas de transmissão não seriam eventos insuperáveis e fatos externos ao comportamento das transmissoras? Em que medida elas concorrem ou contribuem para a configuração desses eventos?
A indisponibilidade da rede de transmissão nesses casos decorre da ação voluntária de terceiros, muitas vezes originárias de atos criminosos, que estão absolutamente fora da esfera de controle e atuação das concessionárias, e não existem medidas preventivas efetivas que possam ser adotadas para impedir a ocorrência desses eventos, já que a indisponibilidade das redes de transmissão para manutenção é uma consequência impossível de se evitar.

Para os casos de sabotagem, vandalismo e disparos de arma de fogo, a postura da ANEEL pressuporia a fiscalização de toda a extensão das redes de transmissão de energia elétrica, de maneira a protegê-las contra ações ilícitas intencionais de terceiros, o que seria impraticável e financeiramente inviável. Mais do que isso, não foi a “regra do jogo” pactuada.

Já para os casos de queda de balões a prevenção é ainda é mais difícil, uma vez que a soltura dos balões, além de crime, ocorre muito longe das instalações da concessionária. Como controlar os balões que caem do céu ao longo de toda extensão da rede de transmissão? Ainda que se considere a queda de balões como algo previsível, não há nenhuma forma de controlar o local e tempo da queda desses balões, e nem de impedir que fiquem presos nas linhas.

As transmissoras não possuem atribuição para evitar ou mesmo repreender a ocorrência desses eventos criminosos, de modo que a prova de autoria (exigida pela ANEEL) é, na maioria das vezes, impossível de ser feita. Afora isso, as Transmissoras não possuem atribuição para agir na prevenção e no combate desse tipo de ação, que é competência das Autoridades Governamentais, que deveriam dar às Concessionárias condições adequadas de trabalho e segurança, em especial em situações que não deram causa e que não tinham condições e atribuição para combater.

Também não há fundamento em responsabilizar as Concessionárias com base na categoria de fortuito interno, que se trata de hipótese na qual o devedor responde pelos danos causados pois o exercício da sua atividade criou um risco a terceiros. O furtuito interno, aliás, serve para aferir a existência de dever de indenizar (risco do negócio), o que não é o caso da PVI, e nenhum dos eventos trata de uma situação em que as atividades das concessionárias geraram danos a terceiros em razão de um risco criado por ela.

Vale frisar que a recuperação dos danos causados por esses eventos é atribuição das Concessionárias, mas a PVI não deveria ser cobrada. Em outras palavras: as transmissoras assumem o risco do seu negócio, mas qual o risco que sua atividade criou a terceiros quando a conduta foi motivada por um fato totalmente alheio ao serviço que presta e à sua esfera de atuação? Nenhum. Logo, não é razoável que além de sofrerem o custo de reparação do dano causado, as transmissoras ainda precisem conviver com redução da receita.

As concessões de serviço público transferem riscos ao parceiro privado, já que a concessionária explora o serviço delegado “ por sua conta e risco ” [art. 2º, II da Lei nº8.987/1995]. Entretanto, essa disposição não pode ser usada para transferir à concessionária a responsabilidade integral por todos os riscos da concessão, porque isso descaracterizaria o caráter comutativo (não aleatório) do Contrato de Concessão e porque aumentaria os custos da contratação, frustrando a modicidade tarifária, uma vez que os riscos assumidos serão precificados na proposta da concessionária.

As melhores práticas regulatórias de alocação de riscos têm como princípio transferir riscos para as partes que possuem melhores condições de gerenciá-los. Riscos que não podem ser controlados por nenhuma das partes devem ser alocados preferencialmente ao Poder Concedente, já que transferi-los ao particular aumentaria os custos para o consumidor.

Não à toa, nenhum dos modelos de Contrato de Concessão de Transmissão disponíveis no sítio eletrônico da ANEEL na internet indicam que as concessionárias assumiram o risco de responder por
eventos extraordinários

. A leitura dos dispositivos contratuais deixa claro que o risco de caso fortuito ou de força maior não foi transferido às transmissoras. Se é assim, as Concessionárias jamais poderiam ser responsabilizadas pelo inadimplemento de obrigações que foram obstadas pelo caso fortuito ou de força maior nos casos de sabotagem, vandalismo, queda de balões e tiros de arma de fogo.

Pressupor que as Transmissoras devem responder por eventos de sabotagem, vandalismo e disparos de arma de fogo é o mesmo que pedir um segurança a cada quilômetro de linha, algo inimaginável do ponto de vista prático e econômico. No caso de queda de balões, seria transferir às concessionárias a responsabilidade por acabar com uma atividade criminosa, múnus que, por princípio, é do Poder Público e nunca dos particulares.

Por isso é que, eventos decorrentes de sabotagem, vandalismo, queda de balões e pipa, e tiros de arma de fogo, que possuem efeitos que fogem da esfera de controle das concessionárias, deveriam afastar a aplicação da PVI, nos termos do art. 393 do Código Civil e dos respectivos Contratos de Concessão.
Nesse contexto, a mudança do entendimento gera um cenário de insegurança jurídica e perda da confiança, tanto que alguns casos têm sido levados para enfrentamento no Poder Judiciário, onde tem-se verificado entendimentos no sentido de que “ a interrupção dos serviços foi ocasionada por ação de terceiros, que, imbuídos com dolo de sabotagem ou não, agiram para danificar as estruturas da rede elétrica de responsabilidade da autora (segurança das instalações), o que, nos termos da legislação acima, não deve ser considerado como “descontinuidade do serviço” para todos os fins”.

O caminho judicial não é desejável e, sempre que possível, deve ser evitado. Todavia, o entendimento atual sobre o tema (que possui contornos eminentemente jurídicos)destoa do razoável, e a falta de diálogo faz com que esse caminho passe a ser cogitado pelos players como possibilidade final de solução do problema.

A Procuradoria-Geral junto à ANEEL (é verdade) apresenta uma análise jurídica legalista e razoável do tema, mas as decisões proferidas pela Agência, em regra, limitam-se a repetir a análise e conclusão (dissociada da legislação e Contratos de Concessão) realizada pela área técnica.

E são diversos os efeitos deletérios que tais eventos [incontroláveis, insuperáveis e imprevisíveis] causam às concessionárias de transmissão, que além de arcarem com custos adicionais da manutenção nas Instalações de Transmissão, ainda ficam expostas aos prejuízos financeiros decorrentes da PVI. O prejuízo é duplo.

A manutenção desse entendimento, sob o argumento de proteger o consumidor, pode gerar efeitos nocivos para a modicidade tarifária, já que a transferência de riscos extraordinários ao particular aumenta a percepção de risco e, com isso, os custos da contratação, uma vez que os riscos serão precificados. Trata-se de um cenário não desejável, notadamente porque os últimos leilões de transmissão realizados indicaram recordes de deságio, cenário que só poderá ser mantido por meio do correto endereçamento e respeito aos riscos que foram alocados a cada uma das partes.

Somente um ambiente de cooperação entre os agentes e o regulador permitirá um ambiente seguro propício para que novos investimentos e novos recordes de deságio sejam verificados e o risco de judicialização afastado, de modo que nos parece adequado que a ANEEL reveja seu entendimento atual sobre caso fortuito e força maior na aplicação de PVI no segmento de transmissão, respeitando a natureza dos eventos e voltando a adequá-lo conforme a lógica jurídico-contratual e de a locação de riscos que fundamentou a contratação do serviço público de transmissão pelos agentes privados quando dos leilões.

BRUNO CRISPIM, ADVOGADO é Counsel da área de Energia do escritório Lefosse Advogados