Fonte.: CanalEnergia / Por Erik Rego
Não há dúvidas de que não se deve ir pelo caminho aparentemente mais fácil de simplesmente sobreofertar a capacidade de transmissão em diversos pontos do sistema
Um dos grandes desafios do planejamento da expansão do setor elétrico é o de evitar o descasamento entre a entrada em operação comercial de novos ativos de expansão da geração e os de transmissão.
Não há dúvidas de que não se deve ir pelo caminho aparentemente mais fácil de simplesmente sobreofertar a capacidade de transmissão em diversos pontos do sistema. Tomando-se como referência o Leilão A-6 de 2019, foram cadastrados mais de 100GW de capacidade instalada em cerca de 1800 projetos de geração distribuídos em diferentes partes do sistema. Naturalmente não é possível projetar todo o Sistema Interligado Nacional para que haja capacidade de conexão disponível para toda essa oferta, ainda mais sabendo-se que nem 40% desse montante será efetivamente contratado no horizonte decenal. Se assim fosse feito, a expansão da transmissão não encontraria o devido equilíbrio entre custo, segurança e flexibilidade.
E se o processo de planejamento da transmissão, que tem natureza determinativa, já possui desafios ao lidar com as possíveis localizações das “próximas” usinas de geração, mesmo aquelas contratadas via leilões do ACR, imagine adicionar mais umas pitadas de incertezas ao processo: a geração distribuída, porém concentrada, além da expansão convencional dos projetos do mercado livre. Esses dois aspectos são particularmente desafiadores, pois a dinâmica desses mercados pode mudar em 2 ou 3 anos e a busca de um espaço disponível no SIN pode levar a verdadeiras “corridas do ouro” como a que tem ocorrido mais recentemente na região Norte de Minas Gerais.
A expansão da rede de transmissão brasileira é planejada centralizadamente pela EPE e é documentada por meio de relatórios de viabilidade técnico-econômica e socioambiental denominados Relatórios R1. Esses documentos são os verdadeiros “nascedouros” dos novos empreendimentos de transmissão e, dentro do segmento da transmissão, são a base para as informações contidas nos demais documentos setoriais como o Programa de Expansão da Transmissão (PET) / Plano de Expansão de Longo Prazo (PELP), o Plano Decenal de Expansão (PDE) e grande parte do Plano de Outorgas de Transmissão de Energia – POTEE, que é elaborado pelo MME, o qual é complementado pelas recomendações do ONS.
Desde a origem da recomendação das obras de transmissão, nos Relatórios R1 da EPE, passando pela elaboração dos relatórios complementares (R2 a R5 elaborados pelos agentes a pedido do MME), pela inclusão dos empreendimentos no POTEE/MME, pela condução da ANEEL do processo licitatório dos novos ativos com todos os prazos legais envolvidos, pela obtenção de licenças ambientais, até a efetiva implantação do projeto por parte dos empreendedores, são estimados cerca de 7 anos para concluir todo o processo!
Por esse motivo, nos leilões de energia de mais curto prazo (A-3 e, mais recentemente, o A-4), a questão do acesso no processo de habilitação técnica dos leilões de energia teve de evoluir de uma avaliação individual da viabilidade de conexão para uma avaliação conjunta do acesso por meio do cálculo das margens de capacidade remanescentes da rede. Se antigamente considerava-se que o prazo de 3 anos era suficiente para realizar todo o processo de planejamento da transmissão, licitação e implantação de reforços na transmissão a partir do conhecimento do resultado dos leilões de geração, atualmente compreende-se que esses prazos certamente levarão ao descasamento entre esses projetos nos leilões de mais curto prazo.
Assim, desde 2013, a Capacidade Remanescente do Sistema Interligado Nacional para Escoamento de Geração tem sido utilizada de forma sistemática nos leilões de mais curto prazo para fins de classificação dos lances. A avaliação dessas capacidades de escoamento da rede foi implementada como uma etapa classificatória nos leilões de energia com o objetivo principal de mitigar riscos de descompasso entre a implantação dos empreendimentos de geração contratados e a instalação dos reforços de transmissão necessários ao seu pleno escoamento.
Por outro lado, no caso dos leilões de mais longo prazo (Leilão “A-5” e “A-6”), a avaliação das margens de transmissão do sistema não é realizada, de modo que a habilitação técnica dos projetos de geração permanece considerando a avaliação de viabilidade de conexão individual dos empreendimentos. E, justamente por essa diferença de tratamento em relação aos leilões de mais curto prazo, cabe uma discussão/reflexão importante aqui.
De uma forma geral, a filosofia de análise individual tem sido mantida nos leilões de mais longo prazo com a visão de que a implantação de reforços na rede de transmissão é factível de ser realizada após conhecidos os vencedores do certame, ainda que com algum risco de atraso na implantação decorrentes do processo. Outra questão é que os resultados desses leilões podem ser considerados como indutores de expansões da rede.
Para que essa dinâmica funcione bem, a EPE tem adotado uma postura bastante proativa antes e após a realização desses leilões. Na etapa pré-leilão, a empresa tem buscado orientar o cadastramento dos empreendimentos em pontos de conexão que exijam um volume menor de reforços da rede, atenuando o próprio risco dos agentes no escoamento pleno da energia comercializada no leilão. Além disso, posteriormente ao leilão, em caso de necessidade de identificação dos reforços sistêmicos, a EPE tem tentado construir uma solução conjunta com os empreendedores de geração de modo a otimizar os reforços a serem recomendados sob a ótica do mínimo custo global.
Sobre esta última questão, ressalta-se que, em diversas ocasiões, os reforços avaliados pela EPE envolvem até a recomendação de subestações mais próximas aos empreendimentos, que eventualmente podem ser implantadas de forma tempestiva, dando a oportunidade aos empreendedores de, por sua conta e risco, alterar, em um segundo momento, a conexão originalmente prevista por outra que melhor lhe convém, mas que guarda coerência com a solução de planejamento. Com certeza, este é o “melhor dos mundos”.
Naturalmente, essa dinâmica requer que toda a cadeia de agentes que atuam no processo de expansão da transmissão, cada um com sua cota de responsabilidade, incluindo o MME e a ANEEL, tenham consciência de que cada parte do processo (estudos de planejamento, consolidação de obras, licitação com prazos compatíveis de instalação, licenciamento ambiental, construção) tem a sua importância para mitigar os descasamentos de implantação. Por sua vez, o empreendedor precisa entender que esse processo é desenhado de forma a flexibilizar as suas condições integração à rede elétrica, mas que há riscos associados quando decide competir nos leilões de energia.
Assim, chegamos ao ponto chave dessa reflexão: a questão do risco de conexão nos leilões de energia de mais longo prazo (Leilão “A-5” e “A-6”). Objetivamente, a conta é simples: caso se entenda que não é possível ou desejável conviver com esses riscos, o melhor caminho é adotar regras mais rígidas na habilitação técnica desses leilões, restringindo a participação apenas aos projetos que visam se conectar em pontos com suficiente margem de escoamento. Ou seja, cabe entender bem o que se quer: flexibilização (risco maior) ou rigidez (risco menor)?
Erik Rego é diretor de estudos de energia elétrica e Marcos Vinicius Farinha, consultor técnico da superintendência de transmissão de energia da Empresa de Pesquisa Energética (EPE)