Até o final da década de 90, o setor elétrico brasileiro era predominantemente estatal, majoritariamente estruturado sobre monopólios regionais nas atividades de geração e transmissão exercidos pelas empresas controladas da Eletrobras e monopólios locais na atividade de distribuição. Nesse contexto, a expansão do setor, em especial nas atividades de geração e de transmissão, era decidida com base em planejamento realizado dentro da própria Eletrobras. A reforma liberalizante que ocorreu naquela época visivelmente pecou por ignorar a relevância do planejamento e do monitoramento da expansão, mesmo que indicativo, apostando que a livre iniciativa encontraria meios de coordená-la de modo a atender ao crescimento do mercado, omissão essa que ficou evidente com o racionamento de energia ocorrido no início dos anos 2000.
Uma das reações a essa experiência setorial traumática, mesmo com a continuação da abertura do setor ao investimento privado, foi a retomada pelo Estado brasileiro do papel de coordenador do planejamento da expansão e de seu monitoramento. Assim, em 2004, por meio das leis 10.847 e 10.848, foram instituídos a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e o CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico), respectivamente.
Nos termos da legislação editada à época, a expansão da geração e da transmissão seria
coordenada da seguinte forma: o planejamento indicaria expectativas de crescimento da demanda e alternativas de fontes e soluções tecnológicas como oferta, além da necessidade de expansão da rede de transmissão, os leilões passaram a garantir a contratação de cerca de 90% do crescimento de todo o mercado com até cinco anos de antecedência além da expansão da transmissão, e o CMSE acompanhava a implementação dos empreendimentos e eventuais riscos ou imprevistos que pudessem afetar o suprimento do mercado, propondo ações corretivas, mês a mês.
Nesse contexto surgiram os estudos de planejamento setorial, elaborados pela EPE sob coordenação do MME (Ministério de Minas e Energia), que originalmente tinham um enfoque maior na expansão do setor elétrico.
O PDE (Plano Decenal de Energia) – à época era o Plano Decenal de Energia Elétrica – é o estudo que olha a expansão do setor energético num horizonte de médio prazo, de 10 anos. E o PNE (Plano Nacional de Energia) é o estudo que olha a expansão do setor energético num horizonte de longo prazo, de 30 anos. A priori, o PDE possui uma atualização anual ao passo que o PNE deve ser atualizado a cada cinco anos, o que foi institucionalizado em 2020.
Nesse sentido, o PDE tem uma natureza mais tendencial, com uma certa inércia, já que traz em seu horizonte um estoque de empreendimentos já contratados e em fase de implementação, haja vista o característico longo prazo de maturação dos investimentos de infraestrutura energética. O PNE, por sua vez, é um documento de caráter mais estratégico, com objetivo de subsidiar o posicionamento do governo e sinalizá-lo ao mercado para que os agentes possam orientar e direcionar suas respectivas estratégias.
Por ser estratégico, o PNE deve ser o alicerce a partir do qual plano, políticas, programas e iniciativas devem ser desenvolvidos. Logo, o PNE tem natureza mais transformacional, no sentido de que não deve apenas considerar políticas vigentes, mas, também, auxiliar a proposição de novas para a consecução de objetivos estratégicos, o que nos permite visualizar movimentos mais substanciais de mudanças de matrizes (energética e elétrica) a depender das políticas energéticas que se desejar implementar.
Considerando-se o PDE 2030 e o PNE 2050, ambos em fase de apresentação à sociedade (o PDE por meio de cadernos temáticos e o PNE em consulta pública), é possível ainda se traçar mais alguns comparativos entre os dois instrumentos de planejamento.
No que diz respeito à metodologia que fundamenta os estudos, dado que o PDE não olha para um horizonte com significativa capacidade transformativa da realidade, ele se baseia em um grande cenário para o qual são feitas análises de sensibilidade com relação a parâmetros específicos. Já o PNE, tanto por apresentar análises de mais longo prazo, está inserido em contexto de maiores incertezas e de atualização menos frequente. Assim, para que seja possível lidar com esses pontos o documento desenvolve cenários que contemplem diversas incertezas, capaz de conter um amplo espectro de trajetórias possíveis para a demanda de energia. O PNE 2050 contém, assim, um cenário em que a demanda cresce com pujança e outro em que ela cresce mantendo o consumo per capita estável.
Com relação às tecnologias consideradas nos horizontes dos estudos, há também diferenças. O PDE 2030 busca contemplar novas soluções tecnológicas que estão ganhando momento. Como exemplo, considerando-se o que já foi apresentado no PDE 2029, espera-se que a resposta da demanda seja considerada nesta nova edição, já que existem grandes indícios de que vem ganhando bastante atratividade.
No PDE 2029, a eólica offshore e armazenamento (usinas reversíveis e baterias) foram colocadas como candidatos, mas ainda não se mostram tão competitivos no horizonte, e o PDE 2030 poderá apontar se houve alguma mudança nesse comportamento. Com relação à GD (geração distribuída), já foi publicizado do caderno temático referente a essa solução tecnológica para o PDE 2030 e observa-se que a GD apresenta maior potencial de desenvolvimento nesse horizonte, comparativamente ao estudo de 2029, sendo que, a depender da análise de sensibilidade, a sua expansão pode variar em 10 GW de capacidade instalada, o que denota as incertezas a respeito do contexto legal e regulatório de inserção dessa tecnologia.
O PNE 2050, por sua vez, já prevê uma série de possibilidades em termos de novas tecnologias disruptivas, como por exemplo o hidrogênio, que mal consta hoje nas matrizes brasileiras.
Outra tecnologia interessante, porque muito defendida no mundo, é a eletromobilidade. Considerando a tecnologia e infraestrutura existente no Brasil para os veículos leves movidos a etanol, o PNE identifica para a eletromobilidade espaço para atender a nichos de mercado, como a disseminação em grandes centros onde a melhoria da qualidade de ar tende a ser valorizada. O PNE 2050 aponta para a falta de competitividade do preço dos veículos elétricos como um fator que pode reduzir o mérito dessa opção de redução de emissões vis a vis à alternativa movida a biocombustível no Brasil, observado que os desafios para a disseminação dessa tecnologia não se restringem apenas ao custo, mas também à necessidade de desenvolvimento da indústria de baterias ou a questões mais subsidiárias como mudanças na experiência do usuário de mobilidade, motivo pelo qual também devem ser consideradas tecnologias como os carros híbridos e a célula combustível nesse horizonte.
Por fim, quando se considera que o PNE tem o potencial de apontar para movimentos de substancial mudança nas matrizes energética e elétrica brasileiras, interessa informar que o PNE 2050 traz ponderações a respeito da transição energética, reconhecendo que se trata de um processo já iniciado no Brasil, mas que não deve importar a narrativa dominante, em termos mundiais, de eletrificação a todo custo, considerando a abundância e diversidade de recursos energéticos e limpos de que o Brasil dispõe.
*Agnes M. da Costa é chefe da Assessoria Especial em Assuntos Regulatórios do Ministério de Minas e Energia.